Tuesday, September 30, 2014

noite suja, noite de flores*

the sleeping beauty

só à pedrada

o país criança

isto é que é cá um banquete

Eis-nos chegados ao dia em que não temos nada para dizer. Esse dia que sempre chega e não é que seja mau de todo. Que o mesmo é dizer: de uma morte lenta e silenciosa. Que o mesmo é dizer que quando se fala de literatura, poesia ou do Mário Cesariny, que é tudo a mesma coisa, pouco há a acrescentar. Pois que o velho carqueja disse tudo o que havia para dizer e é explícito, o problema: por mais que o mundo dê muitas voltas, é às cambalhotas para o mesmo sítio. "Isso, ou um rosto", dirias, Mário. Um rosto esfacelado de poetas distraídos que não digam muitas coisas. Só o essencial, como uma fera. E ainda assim, sobre esta morte, que direi, Mário? 
Direi que escrevo assim porque ele, Mário, que tenho por poeta, palhaço, crítico e performer, isso tudo ao mesmo tempo uma coisa e a outra sem se distinguirem, disse-me um dia que sonhava que voava lá muito alto e que, quando tinha medo das alturas, fazia de conta que a gravidade era uma espécie estrófica de muito silêncio lá dentro. Tudo passava. Será que passa, Mário? Será que a dorzinha que é menina, crónica de fazer malhinha, ou estas coceguinhas de gravatinha, da piadinha para a Joaquina, passa Mário? Pois que repara: a insurreição tornou-se moral. Vê lá tu. E que eu invente, tal qual como tu, não passa nada. Mais, para falar de poesia em Portugal, tem que se inventar muito que isto de mundos e fundos não é bem assim. A poesia não serve para nada e muito menos se for de barrete ou de alcochete, digo, de enfiada, para embilhar de assentada. Nem consta que alguma vez tivesse revolucionado as mentes, os pés ou as bocas de nação alguma. Que digo eu? Blasfémias. Ou então não, não era assim, que ele dizia, o Mário, cito:

'Meu caro Jorge de Sena (...) venho dizer-lhe que será de meu total desagrado a efectivação de tal anúncio, pelo que muito lhe peço e recomendo me não faça participar do novo ramalhete dos talentos. Como sabe, esteja eu certo ou errado - não é para discutir - são-me sumamente repelentes as alegrias excursionistas proporcionadas por esse tipo de assembleia nacional. Se não lhe faz um transtorno por aí além, prefiro solitário o meu próprio detrito - evola-se muito mais depressa sem acumulação por monturo nos terrenos baldios da capital. Creio, aliás, e isto é uma resposta à sua proposta de sugestções, que: antologias, só tendenciosíssimas, apaixonadamente tendenciosas, como seria de organizar algumas se entretanto não estivéssemos todos a morrer. Da inclusão do meu camarada António Maria Lisboa falará, como é óbvio, a sua própria obra. Pela parte que me toca no assunto, fecho-o com uma pergunta: será possível que você, Jorge de Sena, a ter lido o que António Maria Lisboa publicou, pense, presencisticamente, em incluí-lo, cadáver, poemas, ossos, tudo, em banquete tão sociedade de recreio e tão concomitante gracinha do meio editorial português?' Jorge de Sena não só incluiu os poetas em questão como lhes estabeleceu fichas biobibliográficas tão retorcidas como a cabeça dele. (Isto foi o Mário em 1958 a escrever ao Jorge de Sena e a pedir-lhe educadamente que o tirasse do 3º volume das Líricas Portuguesas. Está visto que o outro era teimoso que nem cornos.)

Não é verdade que estejamos todos a morrer, Mário. Há os que acham que não. Mas isso é só enquanto têm a ilusão que se se atirarem dum segundo andar, ganham asas e conquistam o céu, como tu. E se partirem a boca toda, é porque se esqueceram de a fechar. Vá, passo por esta poesia toda do pinguim ao papagaio porque estudo literatura e a literatura mata-me. A literatura aborrece-me, Mário. E a morrer, que seja de uma dor funda. Porque nem me aborrece de morte. Primeiro, porque tu já disseste tudo. Segundo, porque entre o pinguim e o papagaio, não se avista nada a não ser um horto de silêncio, como dizia o Al Berto mais ou menos mas sem a parte do incêndio.  E segundo outra vez, porque para estudar aqueles que fumam cachimbo e trocam as pernas no programa da manhã a dizer piedades, escolho as tuas alarvidades e prefiro sempre as tuas perninhas, Mário, magrinhas, arqueadas, fininhas, sim senhor, de tanto envelhecerem e irem sozinhas, para casa ou outro lado qualquer, oh Mário. Mas desses como tu, não sobra mais nenhum. Foram tombando uns e umas atrás de uns e das outras, com os corninhos ao sol em efeito catadupa e uma sanidade mental meia chalada, incompreendidos e idas e corridas à pedrada, e à porrada, no país que era criança mas agora já não é, é adolescente e tem a mania.
Em todo o caso, Mário, que digo eu da minha justiça poética que não passa disso mesmo, uma forma de achar? Digo que não tem interesse nenhum que lhe chames gracinha, ao meio editorial português, porque assim eu fico sem nada. E já me basta nem circo, nem leões. E ainda assim, escrevo. Escrevo porque oito anos depois de morreres e as televisões terem acorrido ao teu funeral, vá lá, sabiam quem tu eras, a noite continua suja e há por aí umas flores de plástico. Retorcidas, ressequidas, sem cheiro ou graça nenhuma. E há quem meta de permeio e avental, outra vez a embilhar um poema a dizer que se vende. E ainda hão-de subir-nos ao palco a vender-nos a alma e a unta da cobra. Pois que há, e tu crês que sim. E tu vê lá que depois do "Au Tour des Livrées Sanglantes"**, se crê outra vez nisso. Não vai mal nenhum ao mundo que assim seja, já sei que dirias isso e até subias à cama de castanholas e vinho. Eu é que não estou para isso.
Isso ou uma morte que é dura: cadáver, poemas e ossos, tudo num banquete. Todos lambendo a tibiazinha. Já o meu avô dizia, quando lhe acenavam da morte, "mas isso agora é assim?". Pois não que não é! Os camelos. E tu Mário, faz-te à estrada, não te ponhas a amar que ainda te apanham e te fazem uma gala. Não que tu caísses ou bamboleasses. Mas já por aí andam aos salamaleques e tu não ias gostar nada que te fizessem do pescoço, um osso, que nem para joelho lhes chega o artelho. 
Em todo o caso, estou bem contente que a crítica literária esteja morta e enterrada e a poesia e isso tudo, que morra tudo. Assim como a assim, recreio por recreio ou ramalhete por alfinete, de talentos ou unguentos, prefiro uma morte, ao sol. E que nos dês nas trombas numa manhã de outono com a tua alegria. 





* - A. Breton
** - Manifesto dos surrealistas franceses escrito em 1957, por altura em que os dirigentes soviéticos desautorizam Estaline, onde se reafirma a separação do surrealismo face ao marxismo e se repudia veementemente o regime soviético.


Monday, September 29, 2014