Thursday, February 19, 2015

'Concerto para nação e sorriso'

The Dust of Time - Theo Angelopoulos [2008]

"Vezes e vezes debati a hipótese de um sorriso significar, em contraponto. Concerto para nação e sorriso. Será isso, e possível?
Consultei historiadores, pugilistas, ligeiros pianistas, revolucionário orto e heterodoxos, algumas mulheres em meias-noites especiais. Coisa de estudar o assunto com a grande minúcia que ele merece. Não seria justo omitir que recorri também a certa gente muito ferida pela Terra, e que, depois de convenientemente bem bebida, se torna imbatível na arte de abordar problemas insolúveis, passeando ao longo deles, noites inteiras, de mãos atrás das costas e aquele ar solene e sensível de quem discute com a morte em frente do mar."

Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)

Tuesday, February 17, 2015

it will be dark soon

last

perfect

eternity

lost home

of

time would slow

radiant silver

royal body


sleepy

dust

Fotos: ESA (67P/Rosetta Mission)
it will be dark soon,
last
perfect eternity,
lost home of time
would slow
radiant silver,
royal body,
sleepy dust.


Saturday, January 10, 2015

A insustentável leveza do riso

Fotografia: João Paulo Cruz


"Rir é a arma absoluta”. Frase de choque para estes dias. Dedicada especialmente aos faccionários do riso q.b. Vem-me a par de uma outra que li à entrada do Bloco 4 em Auschwitz: “Aqueles que não conhecem a história estão destinados a repeti-la” (George Santayna).
O que mais custa nestes dias é acordar no âmago das nossas vidas certinhas, trágicas e ridículas e não ter vontade de rir. É perguntar em estertor porquê e a resposta escapar-se-nos ambígua e difusamente pelas sombras da história. Não, não basta a ideologia, o moralismo, a religião, os analistas, a cultura ou a economia. Não há soluções finais, eficazes e felizes para problemas complexos como estes.
Era fácil se fosse só apanhar os bandidos e exterminar a estirpe deles. Mas os sujeitos não vieram de Marte e são seres humanos. Temos de coabitar. Em todo o caso, quem são? Que período da história é este que os germina? O que explica que jovens tão jovens sejam então uma espécie de lixo underground da história? O que sobra de um sistema de organização social que vem fracassando redondamente e em catadupa? Falhou a família, falhou a educação, falhou a política, falhou a sociedade, falhou a religião, falhou a história, falhamos nós.
Porquê, se rir é tão e somente sinónimo de liberdade e inteligência? Se quanto mais refinado e sofisticado o humor, mais arejado e libertador? Não, o riso não é leve! O riso não é entretenimento! Como dizia Almada Negreiros, “a alegria é a coisa mais séria da vida”. Se nos roubam a vontade de rir, roubam-nos a inteligência, a consciência, a capacidade de nos olharmos em perspectiva e, com distanciamento, relevarmos as mais profundas e arreigadas das nossas convicções, causas, sombras.
Não, não basta encontrar um bode expiatório. Como defende Amartya Sen em Identidade e Violência (2006), o ser humano tem muitas identidades: é pai, mãe, filha, professor, católica, budista, artista, político, activista, jogador de futebol, vizinha. Sim, ainda é preciso relembrar o óbvio. Porque identidade nada tem que ver com fanatismos e totalitarismos. Acabados de sair da Era dos Extremos, para onde vamos? O que não aprendemos com a história?
Os ciclos históricos começam, acabam, renovam-se. Pelo caminho há crises, apocalipses e revoluções. Panta rhei. E não há um motivo para isso, há vários ligados entre si. E não é pela esquerda ou pela direita. É pensando a história como um todo, nos seus subterfúgios, enredos e meandros. Questionando. Pondo em causa. Rindo.
Enfim, o que seremos sem a capacidade de rir de nós próprios? Da nossa pequenez, medos, defeitos, do lugar infra-cósmico que ocupamos na imensidão do universo? O que sabemos se não apenas que nada sabemos? É um lugar comum, é universal. Será?
 “Keep your friends close, but your enemies closer”, diz Don Corleone em The Godfather (1972). Por inimigos entenda-se aqui, os medos. Sim, mantenhamo-los bem próximos, encarando-os de frente, rindo deles e da nossa mediocridade. O riso não é insustentável. O que é insustentável é a falta dele.

Texto originalmente publicado em P3

Friday, December 26, 2014

Séries de culto e o lado b da história



James Gandolfini não morreu. É um ícone polémico da história contemporânea e faz parte de um conjunto de arquétipos sociais complexos com que tentamos compreender o mundo. O mesmo para Laura Palmer (de regresso, em breve), Macgyver, Seinfield, Dr. House, Jack Bauer, Dexter, Joel Fleischman, Walter White, Fox Mulder e Dana Scully, entre tantos outros.

Esta galeria muito excêntrica (e pós-moderna) compõe um sortido colorido de personagens semi-reais, semi-fictícias, que a indústria de entretenimento tem vindo a produzir em massa, mas não sem nada a declarar: desta ou daquela maneira, as suas estórias deram significado, ilustraram ou problematizaram questões, dúvidas, angústias da história.

O culto das séries terá começado em Portugal algures nos anos 80 com a televisão a cores. Hoje, fazem parte do capital cultural que consumimos diariamente, juntamente com a música, a publicidade, as revistas e as aplicações. Mas será que vemos séries porque nos são impingidas pelos media? Ou é a pescadinha de rabo na boca e consumimos porque nos faz falta e por isso é um nicho de mercado? Não vai mal nenhum ao mundo por isso. Importa, sim, perguntar por que é que as séries importam. Também elas contam a história da história?

Há séries, claro, para todos os gostos. De vários tipos, tamanhos e feitios. Das mais sofisticadas (tipo "Sopranos", "Six Feet Under", "Dekalog") às 3+1=4 (as previsíveis, as que não dão sono mas também não tiram). Adaptam-se às nossas vontades, personalidades, "moods". Posso escolher entre rir hoje com o Ricky Gervais ("The Office"), chorar amanhã com "The World at War" ou beber um chá com a família Crawley ("Downton Abbeye"). Depois, há as mais ou menos universais, como "Game of Thrones", que só quem ainda não viu pode dizer que não gosta ou não lhe diz nada. É um verdadeiro "case study" estético e sociológico.

O "culto" advém da combinação explosiva que estas produções fazem de um conjunto de factores: o entretenimento (que não é uma coisa terrível e é tão antiga como o ser humano); a sofisticação dos meios de produção, da luz à fotografia, passando pela música e os argumentos, muitos deles, brilhantemente compostos e escritos, satisfazendo as nossas necessidades estéticas, sim; o recurso ao jogo, ao estímulo mental e corporal, respondendo à nossa apetência para desafios, como tão bem sistematizou John Huizinga no seu "Homo Ludens" em 1938.

Mas não só. As séries são reservatórios psicanalíticos. Ali lava-se roupa suja sem pudor. Dos preconceitos aos medos, dos desejos aos sonhos, do sexo à política do pior. Tudo posto a nu, com tiros, sons e cores. Vale tudo. Porque é ficção. É ficção? Como diz Aristóteles, a ficção é tão real como a suposta verdade porque não é o que é mas o que podia ter sido. Neste imaginário de possibilidades sem limites e com uma panóplia incrível de recursos tecnológicos como nunca tivemos, as séries dão azo à necessidade humana de explicação e contemplação do mundo.


Texto originalmente publicado em P3.